Embora não costumem figurar nas publicações sobre sua obra, as residências de Paulo Mendes da Rocha revelam aspectos norteadores de seu pensamento. Por serem projetos experimentais, com os quais ele consolidou sua técnica e visão, constituem ricos objetos de estudo. Entre eles, a Casa Butantã, desenhada para o arquiteto e sua família em 1964, é quase um manifesto sobre uma nova maneira de morar. O concreto aparente, a continuidade dos espaços e a elegância das linhas despertam a atenção; mas é a concepção radical na qual se baseia a relação entre o privado e o comum o elemento inovador do projeto. A casa representa sua visão da arquitetura como experiência compartilhada do espaço – um dos elementos amplamente admirados em seu trabalho e mencionado pelo júri que o agraciou com o Prêmio Pritzker.
O livro oferece ao leitor uma visão completa da casa e busca transmitir o caráter experimental e lúdico de um dos projetos mais emblemáticos do arquiteto. Além da apresentação da arquiteta Catherine Otondo, a edição conta com posfácio de Flávio Motta, croquis e desenhos técnicos do projeto, depoimento inédito de Paulo Mendes da Rocha e ensaio fotográfico também inédito de seu filho – e o atual residente da casa – Lito Mendes da Rocha.
CONTEÚDO
A casa sem pintura, por Catherine Otondo
Sobre a casa butantã, por Paulo Mendes da Rocha
O espaço como projeto social, por Flávio Motta
TRECHO DO LIVRO
A casa sem pintura, Catherine Otondo
"Sí, sabemos que el hábitat disperso generado por la vivienda unifamiliar y por el automóvil que la hace accesible es un disparate ecológico, un atropello paisajístico y un empobrecimiento social: el despilfarro de recursos materiales y energéticos en su construcción y mantenimiento es una agresión contra el planeta; la extensión indiscriminada de ese tapiz de baja densidad degrada irreversiblemente el territorio, y la fragmentación de la vida colectiva destruye la tupida red de contactos que es la principal riqueza de las ciudades, el soporte de su prosperidad y la base de su atractivo. [...] Pero la casa nos fascina y nos seduce". - Luis Fernández-Galiano
Durante os anos 1960 e 80, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha projetou aproximadamente trinta residências unifamiliares, das quais 23 foram construídas. Essas casas representam realizações fundamentais para a compreensão da trajetória projetual do arquiteto, tanto na dimensão do raciocínio espacial, quanto no estabelecimento de um procedimento preciso em relação a valores ligados à técnica e à estética. Tais realizações, no entanto, pouco aparecem em publicações, seja em revistas, seja nos poucos livros dedicados exclusivamente à sua arquitetura. A ausência explica-se, em parte, por uma escolha pessoal.
Em seu primeiro livro retrospectivo, publicado pela editora Cosac Naify em 2000, por exemplo, entre os mais de cinquenta projetos selecionados pelo arquiteto, apenas um é de uma casa – a Casa Gerassi (1988). A cidade desejada pelo arquiteto não poderia ser feita de casas isoladas em um lote, separadas do convívio da rua, segregadas em bairros monofuncionais, pelos quais se circula predominantemente de carro. Ou seja, projetar casas – especialmente quando há um consenso de que as cidades devem se tornar mais compactas, densas e de uso misto – pareceria um horizonte apequenado, distante da vocação da arquitetura a que aspirava. Chama, por isso mesmo, a atenção o número de casas construídas em um período de tempo bastante curto.
A realização de projetos residenciais particulares deu-se, sobretudo, durante o período da ditadura militar, quando o arquiteto teve seus direitos civis cassados pelo Estado, ficando impedido de participar de projetos públicos. Restava-lhe projetar casas. A partir do início da década de 80, com o gradual processo de abertura política do país, a realização de projetos residenciais diminuiu consideravelmente. Nos anos 70 foram realizados 26 projetos de casas. Na década de 80, oito. Nos anos 90, quatro. Nos anos 2000, apenas cinco. Naquele período, houve expressiva produção de residências unifamiliares atendendo à demanda de uma classe social com alto poder aquisitivo em São Paulo.
São obras realizadas por um grupo de arquitetos que compartilham valores estéticos, formais e programáticos, constituindo o que ficou historicamente conhecida como Escola Paulista – caracterizada por construções, segundo Ruth Verde Zein, que remetem ao brutalismo corbusiano pela disposição espacial dada por blocos únicos destacados do chão, pela procura de horizontalidade e pelo uso da estrutura em concreto armado protendido, “valorizando sua qualidade de manufatura”.
O exame da trajetória completa de Paulo Mendes da Rocha permite afirmar que projetar casas foi uma espécie de laboratório para o arquiteto, onde pôde ensaiar soluções técnicas, espaciais e materiais que foram consolidando seu modo particular de pensar e fazer projetos. Por sua escala reduzida, as casas foram ideais para tais ensaios, sendo evidente a relação que algumas residências possuem com projetos desenvolvidos posteriormente. Este livro apresenta uma dessas casas: a Casa Butantã, realizada em 1964, na qual Paulo Mendes da Rocha morou com sua família entre os anos 70 e 90.
A estrutura do livro apoia-se em três narrativas, três vozes: o arquiteto que nos conta a constituição do projeto, os desenhos que ilustram essas ideias e explicitam seu modo construtivo – como as coisas são feitas –, e o ensaio fotográfico de Lito Mendes da Rocha, diretor de fotografia, filho do arquiteto e atual morador da casa, que apresenta uma coleção de imagens feitas com o sabor do dia a dia. Coube a mim costurar essas linguagens, e com um viés afetivo. Durante muitos anos, aquela foi para mim a casa da Jô, minha vizinha, onde brincávamos com a turma do bairro, dormíamos vendo a lua pela janela do teto do quarto, escorregávamos no morro, tomávamos banho de chuva nas piscininhas de concreto, fazíamos festas, o diabo! Desfrutamos toda a liberdade que o lugar oferecia por ser uma casa sempre aberta, como se fosse feita para nós, crianças. Com o tempo, tais lembranças se misturaram com meu olhar de arquiteta, permitindo-me enxergar na Casa Butantã um viver muito particular, que exige porções de generosidade, transigência e sensibilidade de cada um com o outro. Um espaço que forma e transforma, ampliando os horizontes da existência de quem vive essa experiência.
Numa primeira aproximação, os desenhos do projeto da Casa Butantã podem dar a falsa impressão de que se trata de uma arquitetura de apreensão fácil, dado o uso de formas simples e reconhecíveis. Entretanto, depois de anos estudando e manuseando o acervo de desenhos do arquiteto, e, sobretudo, frequentando as obras construídas, identifico uma complexa relação entre o pensar e o fazer no seu modo de projetar. Este modo se caracteriza pela concisão, resultando num desenho justo, preciso e sintético.
Assim, uma linha dupla representando um fechamento lateral é uma peça única de concreto de x metros de comprimento por x de largura, a qual opera como parede, platibanda, calha de água pluvial e se dobra em uma janelinha em balanço. Ou seja, um traço no papel realiza várias operações no concreto. Por isso, trata-se de uma arquitetura que exige o olhar pelo estar, pelo movimento, pela experiência espacial.
E é essa ampliação do olhar que propomos aqui. A Casa Butantã, de 1964, é um caso exemplar. Sobre uma pequena colina em frente à Casa do Bandeirante, no bairro do Butantã em São Paulo, o arquiteto construiu duas casas idênticas. No terreno próximo à esquina está a casa feita para a família do arquiteto, e, ao lado, a de sua irmã. As casas foram implantadas no terreno em conjunto, separadas por um talude ajardinado. Fisicamente o que as une é um pequeno túnel cavado sob esse talude. Uma espécie de passagem secreta.
O volume da casa é constituído por apenas seis superfícies justapostas em comprimento, altura e largura, as quais encerram um espaço interior único, com duas faces transparentes e duas opacas, um piso contínuo de madeira e um teto plano perfurado por claraboias de vidro transparente. A planta é organizada como se fosse uma casa térrea elevada, com um rigor “miesiano”, no qual todo o programa (exceto as áreas de serviço) está disposto em setores bem determinados. Uma casa moderna na sua essência como o homem que a habita.
Nos espaços internos, a separação entre as funções de estar, trabalhar e dormir é feita apenas por elementos leves que não chegam até o teto, exigindo do morador certo empenho em aceitar o convívio com o outro. O acesso à residência é feito pela escada de concreto, na qual o patamar de virada dos lances ganha uma dimensão exagerada, transformando-se em alpendre. Nele, duas cadeirinhas e um cafezinho fazem o programa da tarde.
A porta de entrada alinha-se abruptamente ao último degrau dessa escada, abrindo-se para um espaço “sem nome”: com comprimento equivalente a toda a extensão da casa, é uma espécie de varanda fechada para onde se abrem todos os quartos e a cozinha. Nessa varanda há uma longa bancada de concreto: sobre ela estão a máquina de costura, os brinquedos, os livros que não cabem nas prateleiras, a roupa a ser distribuída pelos quartos, o correio e as chaves do carro. Nas extremidades da varanda há duas janelinhas de contemplação, uma no nível do tampo da mesa da copa, outra na ponta oposta da casa, por onde vemos quem vem da rua.
Os quartos, dispostos no meio da casa, não têm janelas na parede, estas ficam no teto. Quando há lua cheia, o quarto fica azul. À tarde, dourado. Toda hora muda de cor. Dentro de cada quarto há vários ambientes: o de estudo, o de dormir, o de se trocar e o de se banhar. Tudo em sequência, como se fosse um pequeno apartamento. Do lado de lá dos quartos está a sala, com a mesma extensão da varanda, porém mais profunda. Na sala estão os ambientes de estar, ler, escutar música e de comer. Tudo nela é de concreto: as mesas de jantar e de trabalho, as prateleiras, a lareira e os sofás.
Ao contrário de uma casa “tradicional”, não há diferença formal entre frente e fundos. Não há revestimento externo, nem interno. A cor da casa é a cor do concreto. Diferente das outras casas, como dizia o carteiro do bairro, ela era fácil de reconhecer pois era a “casa sem pintura”! O caixilho que fecha a frente também fecha o fundo. Ambos sombreados por uma pérgola de concreto. Nas laterais opostas, as empenas de fechamento da casa são superfícies de concreto bruto com poucas aberturas – as janelinhas já mencionadas e um vão de luz que se forma inesperadamente entre o peitoril de blocos de concreto e a empena. Nesse caso, a janela fica no plano horizontal, como um tampo de vidro iluminado, através do qual espiávamos quem tocava a campainha. Depois compreendi que esse vidrinho quando aberto trazia uma brisa fresca para o interior da casa.
O sentido de totalidade espacial pode ser percebido, de modo mais direto, pelo chão de tábua corrida que percorre a casa inteira. Da cozinha ao banheiro, da sala ao corredor. Quase não há portas. As poucas existentes fecham os quartos e são idênticas – madeira com veneziana. Quartos, sala e varanda transformam-se em um espaço único num simples correr de portas, permitindo um movimento fluido, pois não há corredores sem saída, nem salinhas fechadas.
A rigidez das funções domésticas, determinada de modo tão preciso na planta, parece dissolver-se com um simples abrir de portas. Em dia de festa, tudo vira um grande salão e a casa inteira brinca. Esse caráter movente caracteriza o pensar do arquiteto, revelado no seu projetar próximo à dimensão construtiva da obra, de como são feitas as coisas, de sua materialidade e seu funcionamento, por meio do qual o artífice aproxima-se do engenheiro. O singular do reproduzível. Um modo de projetar que transforma o espaço da vida das pessoas numa proposição nova, sem hierarquias, livre, divertida e larga.
Brincadeiras: o gozo da ideia
O desfrute do recinto construído passa a ser para o arquiteto. Do ponto de vista da autoria, é uma casa que se faz como um verdadeiro ensaio lúdico. Nesse momento do projeto, surgem artefatos muito interessantes, tais como o esquentador da toalha para o banho, o sistema de abertura dos caixilhos, as portas, a escada, os puxadores etc. Tais artefatos são complementos justapostos à estrutura principal de concreto armado. São elementos independentes da estrutura principal, no sentido que poderiam ser aqueles que lá estão ou outros. Quando você faz um prédio de trinta andares na avenida Paulista, você não sabe de antemão se aqueles espaços serão ocupados por um consultório ou uma sala de ginástica, advogados, uma empresa de engenharia etc. Portanto, é muito interessante reiterar a ideia da arquitetura como o amparo à imprevisibilidade da vida. Usamos, mais uma vez, o concreto armado para fazer as paredes internas, os armários de cozinha e dos quartos, os móveis, a lareira. Tanto que a planta de uso interno de uma casa não é idêntica à da outra. Obedece a uma lógica que a própria estrutura exige, mas não é a mesma. São duas plantas.
ISBN
9788592886134Título
Casa Butantã – Paulo Mendes da Rocha / org. Catherine OtondoAutor
Catherine Otondo, Paulo Mendes da Rocha, Flávio MottaEditor
UbuAno da Publicação
2016Encadernação
Capa duraIdioma
Português